A ficha não caiu ainda
UOL: Como é ser a única mulher pilotando o maior avião militar fabricado no Brasil?
Capitão Jeciane: A ficha não caiu ainda. Fiz o simulador do KC-390 em São José dos Campos (SP), já fui para a Bélgica e para a Indonésia para treinar no simulador do avião C-130 Hércules, fiz o simulador do C-105 Amazonas em Manaus (AM), do Bandeirante em Curitiba (PR), e eles proporcionaram grande ensinamento tanto da condução normal dos voos, quanto da parte de emergências.
Por enquanto, vejo mais como um novo projeto. Ainda não tenho essa noção do que que é ser a primeira mulher [a pilotar o KC-390]. Me vejo podendo incentivar outras mulheres a saberem que é possível chegar lá. Tem muita gente que ainda não sabe que mulher pode ser piloto na FAB.
No meu Instagram, muitas vezes comentam que não sabiam que mulheres poderiam fazer isso. O que espero que venha a ser impacto dessa função que estou assumindo é incentivar outras e mostrar que a gente pode chegar lá de fato também.
UOL: Mulheres de turmas antigas serviram de inspiração?
Capitão Jeciane: Quando eu estava pensando em entrar na FAB, foram elas que me incentivaram. Via aquelas cadetes da AFA (Academia da Força Aérea) com cachecol [de aviadora], celebrando por terem feito o primeiro voo solo, e falava comigo mesma "que incrível". Imagino que, talvez, eu possa ser essa mulher para outras que queiram entrar na FAB.
UOL: Elas melhoraram as condições para as próximas gerações?
Capitão Jeciane: Foi como se aquelas mulheres pioneiras das primeiras turmas de aviadoras estivessem abrindo caminho para que as próximas, quando passassem, se deparassem com o caminho um pouco mais limpo. Como se elas capinassem uma mata fechada e as seguintes conseguissem ter mais facilidade de caminhar.
É como se a gente pudesse focar mais no trabalho e na contribuição do que em quebrar barreiras. E quebrar barreiras cansa, dá trabalho. Essas pioneiras que passaram na minha frente deixaram o trabalho um pouco menos difícil, de forma que eu consiga focar em coisas mais práticas e na minha contribuição para a força aérea em vez de focar no estigma de que preciso provar que o meu lugar é esse e que sou capaz de lidar com os desafios. Provar qualquer coisa é extremamente cansativo.
Imagino que, a cada ano que passe, a cada turma de mulheres que é formada, o caminho está cada vez mais limpo para elas.
UOL: Que tipos de desafios encontra no cotidiano?
Capitão Jeciane: Às vezes, podemos ser acionados para passar um dia ou 15 dias fora de casa na véspera. Não há uma rotina estabelecida, não tem como programar o fim de semana. Quem está mais próximo de mim sabe como é, mas Natal e Ano-Novo, por exemplo, eu não consigo considerar tanto, porque eu posso ter uma missão. Hoje aprendi a lidar com isso de uma forma mais leve, entendendo que isso faz parte do meu cotidiano.
Mas, também tem o lado bom, que é sair, poder conhecer outros lugares, de rever os amigos. Na FAB, onde você pousa costuma encontrar algum amigo de turma, e, aí, você conversa, pergunta como está a vida, vê a perspectiva dos outros. Se você está em casa, sempre com a mesma rotina, nem sempre dá para ver a perspectiva do outro, de quem está do outro lado do país, por exemplo.
UOL: Tem algum desejo para o futuro?
Capitão Jeciane: Estou muito feliz onde estou, extremamente grata a Deus por ter me possibilitado chegar onde cheguei. Tenho consciência de que muitos gostariam de estar no meu lugar. Agora é continuar me dedicando e me esforçar a cada dia para me tornar um ser humano melhor e consequentemente, um profissional melhor. Quem sabe um dia, eu consiga atingir a operacionalidade necessária e realizar o voo na Antártica!
Apoio da família é fundamental
UOL: Como você se aproximou da área militar?
Capitão Jeciane: Estudei sete anos no Colégio Militar de Campo Grande (CMCG). Meu pai sempre gostou muito de temas militares de uma forma geral e conversávamos de vez em quando sobre isso. Ele admira e pesquisa tanto sobre esses assuntos que sempre me deixa no chinelo quando a gente fala desse tema [diz aos risos]. Meu avô era militar do Exército, e sempre me apoiou nas minhas escolhas também me incentivou nos estudos.
UOL: Como foi seu ingresso na FAB?
Capitão Jeciane: À época, a EsPCEx (Escola Preparatória de Cadetes do Exército) não permitia o ingresso de mulheres, e descobri que na AFA ou na EFOMM (Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante) seria possível.
Nesse contexto, eu tinha tendência para ir para a FAB, pois frequentava os portões abertos que ocorriam na Base Aérea de Campo Grande, então tinha um contato maior com a Força Aérea.
UOL: Como foi a relação com sua família nessa época?
Capitão Jeciane: Na primeira vez que eu prestei o concurso, não passei. Diante disso, meu avô começou a ficar preocupado, pois sabia que esse era um sonho meu, e ele sempre me incentivou muito.
Um dia ele me perguntou "E aí, Jeciane, e se não der certo? Você tem um plano B?". Eu respondi que sim, e ele questionou qual era. Eu disse que era prestar o concurso para entrar na AFA de novo.
E eu acho que tem de ter essa resiliência, pois é você que tem de saber do seu sonho. A família é muito importante, porque ela te dá uma base e uma segurança, mas, principalmente você é quem tem de buscar seu sonho.
Trajetória
Natural de Campo Grande (MS), a capitão Jeciane ingressou em 2012 na AFA (Academia da Força Aérea), órgão de formação inicial de aviadores da FAB, localizada em Pirassununga (SP). Em 2015, seguiu na aviação de transporte, uma das três possibilidades após concluir o curso (as outras duas são aviação de caça ou aviação de asas rotativas, os helicópteros).
Ficou um ano em Natal (RN), onde concluiu sua especialização, voando uma aeronave C-95 Bandeirante no esquadrão Rumba. Passado este período, se deslocou para Belém (PA), onde foi a primeira mulher a comandar um avião no 1º Esquadrão de Transporte Aéreo, batizado de Tracajá, operando o C-98 Caravan.
Em 2020, pôde voltar à sua terra natal, voando, também, o C-105 Amazonas, avião cargueiro capaz de transportar cerca de 70 soldados ou 40 paraquedistas. Após um ano, foi transferida para o Esquadrão Gordo, localizado no Rio de Janeiro, onde operou o C-130 Hércules, recentemente aposentado da FAB.
Em 2024, passou a integrar o quadro de tripulantes do KC-390 na FAB, e se tornou a primeira e única mulher a pilotar o cargueiro mais avançado da frota. Hoje, ainda encontra tempo para dividir a rotina militar com os estudos da faculdade de psicologia.
Parabéns e siga sempre seus sónhos!
Parabéns, que sirva de incentivo para mais jovens... Valeu 👏